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Os Deuses no Exílio

O poeta no exílio, Heinrich Heine, produziu uma interessantíssima obra em prosa, cuja classificação é tão difícil quanto é saborosa sua leitura.

Tem pretensão ensaística, sabor romanesco, humor e ironia. Basicamente, trata da expulsão dos deuses olímpicos da Europa com o triunfo do cristianismo. O substrato sério do  texto (que foi publicado em duas versões, uma em francês, onde vivia o poeta, e outra em alemão, cuja publicação demorou por causa da severa censura que Heine recebia em sua terra por causa de suas posições políticas) conta como os deuses foram incorporados no folclore europeu, transmutados em fantasmas, gênios e demônios, opostos à religião cristã. Mas a forma como é narrada a passagem da religião pagã até sua incorporação pelo cristianismo é maravilhosa.

Na versão francesa, mais longa, o autor narra o episódio do acadêmico que busca escrever as “Magnificências do Cristianismo”, uma obra apologética que saiu da pena diretamente para a fogueira por força de um autor que de tão zeloso por rebater qualquer argumento contra suas palavras estuda tão a fundo o lado oposto da arena intelectual que passa a se convencer de sua correção e, por conseguinte, rejeita sua portentosa obra.

As lendas sobre Baco, Mercúrio, Júpiter e Apolo, emolduradas por episódios referentes às fontes que contaram ao autor as lendas, aparecem em ambas as versões. Uma versão da lenda de Venus e Tannhauser está apenas na versão francesa.

O livrinho, com as duas versões, mais o poema “Os Deuses da Grécia” e mais um ensaio crítico para cada uma das versões, é uma delícia de ser lido. Cada texto de Heine termina-se em uma sentada. O que espanta o leitor não é a obra. É o preço. Um livrequinho custa trinta e oito paus. O pessoal da Iluminuras perdeu o senso de realidade.

A piedade como protesto

Depois do romantismo paródico de Puchkin, o autor que definiu a cara da literatura russa na primeira metade do século XIX foi Nikolai Gogol. O que eu conhecia sobre Gogol se resumia em uma versão da peça “O Inspetor Geral“, encenada a mais de dez (talvez quinze) anos dirigida por Antonio Abujanra e a peça “The Overcoat“, baseada no conto O Capote, pelo grupo britânico Gecko.

Ambas peças tratam do mundo do funcionalismo público russo na época do império. Corrupção, tráfico de influência, abuso de autoridade, tudo o que faz de ambas as montagens algo estranhamente contemporâneo e familiar, a despeito das diferenças temporais e geográficas que separam o Brasil do século XXI da Rússia do século XIX.

Mas na leitura de “O Capote” e de outra de suas novelas, “Diário de um Louco” essa semelhança atinge sua aproximação máxima.

Diferentemente da caracterização estilizada, romântica e exagerada dos personagens em Puchkin, os personagens de Gogol não fazem parte do universo da nobreza, da corte e do exército (os extratos elevados da sociedade – normalmente sujeitos à representação literária). São os funcionários mais baixos dentro do departamento de estado. Os escrivões. Que vagam pelas ruas sem ter dinheiro para coche, que não tem dinheiro para aquecimento na gélida São Petersburgo, que não tem perspectiva.

Mas diferentemente do que se imaginaria, não há a representação realista-naturalista. E isso faz do maravilhoso, sobrenatural (realismo fantástico, quase) presente nos contos de Gógol cada vez menos estranho à realidade.

Além do elemento sobrenatural, o que permite que o público leitor de então (uma parcela ínfima de qualquer sociedade – ainda mais na Rússia) aceite ler relatos sobre a classe baixa é o sentimento de piedade que o leitor passa a ter pelos protagonistas. Akaki Akakiévich é parvo ao extremo. Sua incapacidade de se expressar, seu sonho de aceitação graças ao seu novo capote, a humilhação que recebe de seus colegas, das autoridades policiais, tudo recebido de maneira estóica, com sofreguidão e resignação, cativam a simpatia do leitor para a pobre criatura.

Poprishchin, em “Diário de um Louco”, por outro lado, cativa pelo cômico. A progressiva escalada em direção à loucura, percorrida por este outro funcionário público, também fascinado pela insersão social, nos proporciona um dos mais interessantes relatos sobre a esquizofrenia na literatura. O fim de ambos, previsivelmente, é trágico, ainda que cômico ou sentimental.

E a tragicidade, o sentimentalismo e o sobrenatural são as armas que permitem que tais relatos contundentes sobre a situação social na Rússia penetrem, subrepticiamente, nos palacetes e salas de leitura da nobreza e burguesia russas. O deleite com a própria miséria é também algo que nos é bastante caro. Como Machado de Assis e suas crônicas da cidade do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo escravagista e iluminista, nos mostra.

66

Outro folhetim do Laerte.

O primeiro, Muchacha, tratava da década de 50. Este, da década de 60. A diferença é que eu postei Muchacha com ele já acabado.  66 está só no começo. E pode ser que demore pra engrenar. Mas, como sempre, vale a pena seguir.

Clique na imagem para ser redirecionado para o folhetim.

P.S. Há outros assuntos no prelo, mas a falta de tempo atrasou um pouco os textos.

Profanar, uma arte

Ler filosofia marxista pode, muitas vezes, ser um exercício árido, por mais que os conceitos sejam importantes . Quem deu uma passadinha por “História e Consciência de Classe“, de Georg Lukács, sabe.

Por isso é sempre necessário se louvar um livro como “Profanações“, de Giorgio Agamben.  Agamben é um típico pensador pós-moderno, que transita entre a crítica literária, crítica cultural, política, direito, teologia, filosofia, sem nunca deixar-se definir. Bem à maneira daquele a quem muitos dizem ser o predecessor de Agamben, Michael Foucault, que de acordo com Fredric Jameson em seu ensaio sobre a pós-modernidade representava o típico pensador pós-moderno, que transita entre as mais diversas áreas do conhecimento, todavia sem se definir por nenhuma delas.

Pois o livrinho (96 páginas) de Agamben é justamente isso. Transita entre a crítica literária (como no ensaio “Paródia”), crítica cultural (“O Dia do Juízo”), teoria política (“Elogio da Profanação”), passando por momentos onde os gêneros de nã0-ficção e ficção se misturam de maneira quase inseparável (“Os Seis Minutos Mais Belos da História do Cinema”) de uma maneira esteticamente admirável.

O ensaio  que dá título ao volume é um admirável esforço conceitual, ao mesmo tempo em que é uma realização estética considerável. Além de apresentar seu conceito de “profanação”, que na teologia significa devolver um objeto ao seu uso original secular (diferentemente de seu uso “sagrado”, que é restrito ao templo, o uso “profano” envolve toda a esfera humana). Nele o filósofo resume aquilo que ele considera a tarefa política das gerações futuras: profanar o improfanável. A religião-capitalismo, que retira do uso corrente as coisas para alçá-las à esfera da contemplação sagrada, fetichista: o consumo.

Muchacha

De Los Tres Amigos (em voga principalmente após a morte de Glauco), o que sempre foi mais bem dotado tecnicamente era o Laerte. Não era tão escrachado quanto Glauco. Nem tão incisivo quanto Angeli. Mas construia personagens profundos, desenhava com perfeição e calcava muitas vezes sua obra em sutilezas pouco exploradas por seus colegas de geração.

E assim como seus colegas, Laerte envelheceu. Cansou de escrever sobre personagens e entrou numa fase mais “filosófica”.

Nessa nova fase, escreveu uma “graphic novel” em folhetim internético. A Muchacha. É uma história passada nos anos 50, época de TV feita ao vivo, de cantoras do rádio e marcathismo (mesmo no Brasil getulista). Deve sair em livro, em versão revista, expandida, corrigida e adaptada. Mas, que tal curtir a obra direto da fonte?

Cliquem na imagem e acompanhem. Mas, lembrem-se. É um blog. Que, como um mangá, deve ser lido de trás pra frente 🙂

Romantismo à moda russa

Além de O Capote, de Gógol, outras leituras obrigatórias do meu curso de literatura russa incluem obras de Aleksandr Puchkin, autor seminal da literatura russa e responsável pela introdução e divulgação do romantismo na literatura russa. Romantismo russo? Eu pagaria pra ver…

E paguei. E valeu a pena. Li A Filha do Capitão, em boa tradução do russo por Helena Nazário, cujo volume ainda incluiu um ensaio da tradutora comentando a questão das epígrafes no livro. Não que eu seja capaz de avaliar uma tradução de literatura russa, mas a solução da Nazário em manter certos vocábulos em russo com notas de tradução explicativas me pareceu interessante, primeiro por situar culturalmente a obra, além de evitar aproximações, em caso de objetos tipicamente russos. Afinal, um tulup é um tulup, não é um casaco ou um capote. Enfim…

E o livro em  si é uma delícia. Curto (120 páginas, ou 134 com o capítulo excluído, apresentado como anexo ao final do romance), vivaz e muitíssimo agradável de se ler. Assim como no Brasil, romantismo na Rússia é uma daquelas coisas que Roberto Schwarz chamaria de “idéia fora de lugar”. E Puchkin sabia disso. Tanto que usa todos os clichês do romantismo sempre com um viés subversivo e satírico. Primeiramente o “herói romântico” é um imbecil. Desde o início ele é um gauche, preguiçoso que não consegue enxergar um palmo diante do nariz. Um a um os personagens se apresentam como seres patéticos, ridículos e tontos. Desde o general “alemão” até o capitão do destacamento onde Piotr Andréievich Grinov serve, que dá ordens a um regimento de aleijados e zarolhos vestido de pijama enquanto quem manda na fortaleza é sua esposa. O pai do herói é um militar decadente e esquecido pela hierarquia imperial, sua mãe é nula e seu preceptor, um pateta responsável pelo canil da família.

O ponto de partida da obra é o romance histórico, gênero principal do romance romântico (romance romântico? putz, que  horrível, mas fazer o quê? Em inglês isso viraria “romantic novel”). Mas, enquanto em Waverley, de Walter Scott, expoente máximo do romantismo britânico, o herói é imbuído dos mais nobres sentimentos, dado a versificar e corajoso ao extremo, com suas pretendentes descritas ora como a casta e pura (Rose Bradwardine), ora como a donzela guerreira (Flora Mac-Ivor), a filha do capitão é uma menina tonta, medrosa e dada a chiliques. A nobreza dos guerreiros no romantismo tradicional é substituída pela estupidez das autoridades russas, pelos incompetentes e beberrões militares russos e pela parvoíce generalizada dos personagens.

A ironia, a chacota e a sátira não impedem que Puchkin utilize os clichês românticos a seu favor, quando necessário. E, interessantemente, o único personagem a merecer tratamento trágico e elevado é justamente o vilão, Pugatchóv, responsável por um levante popular no reinado de Catarina II. Pugatchóv é sanguinário, mas não bárbaro. Demonstra compaixão, senso de justiça, gratidão e dignidade. Tratamento jamais dispensado pelo autor aos dirigentes militares ou políticos russos.

A nota engraçada disso tudo é que o professor da disciplina de Introdução à Literatura Russa, ao exigir que os alunos lessem na tradução da Helena Nazário, comentou que a tradução havia sido publicada nos anos 80 e ainda não havia sido esgotada, sem jamais ser reimpressa ou reeditada. “Ninguém compra esse livro”, ele disse, “eles só vendem uns exemplares ou outro na feirinha, e olha que eu indico esse livro todo ano”. Pois bem, encomendei o exemplar e ao recebê-lo em casa, aberta a embalagem subiu um cheiro típico de ácaro (aquele cheiro de livro velho, de sebo). Folheei o exemplar fedido e vi: impresso na falida a décadas “Imprensa Metodista”. Data de edição: 1980.

Realmente. Ninguém compra esse treco. O que é uma pena, pois é uma leitura deliciosa.

Manifesto de Apoio a Denise Bottman

Lembram daquele caso onde Fulano foi pego roubando, Cicrano denunciou. Aí Fulano processou Cicrano por tê-lo denunciado? Sim, estou falando do processo que a Editora Landmark move contra a tradutora e blogueira Denise Bottman e contra  a blogueira Raquel Sallaberry.

Um grupo de tradutores pesos-pesados criou um site de apoio a Denise.

No blog há um link para uma petição online, onde os internautas podem manifestar seu apoio à blogueira e tradutora, vítima de um processo absurdo que fere a ética, a honestidade e atenta contra  a liberdade.

Clique e assine a petição.

Clipping – Editora processa blogueira: pode plagiar esta notícia

Uma das minhas áreas de estudo (na faculdade) e interesse pessoal é tradução. Já até postei aqui neste blog uma tradução coletiva que eu e um grupo de colegas fizemos de um conto de Katherine Mansfield: Her First Ball (Seu Primeiro Baile). Pois lendo o blog do Sérgio Rodrigues, romancista e crítico literário, topei com a seguinte notícia que beira o bizarro:

Editora processa blogueira: pode plagiar esta notícia

A tradutora e blogueira Denise Bottmann, do site Não Gosto de Plágio, precisa de ajuda. Caçadora mais ou menos solitária de picaretas editoriais, está sendo processada pela editora Landmark, que pede ao juiz indenização mais a retirada de seu blog do ar – informa Alessandro Martins, do blog Livros e Afins. Tudo por ter denunciado que a tradução de “Persuasão”, de Jane Austen, lançada pela Landmark com a assinatura de um de seus proprietários, Fábio Cyrino, seria praticamente um xerox de uma antiga – e fraca – tradução portuguesa da lavra de Isabel Sequeira, até em seus numerosos erros. A blogueira Raquel Sallaberry, do Jane Austen em Português, também está sendo processada pela editora.

Caso a denúncia seja mesmo na mosca, como os exemplos citados em seu blog indicam (tem até uma mesma gralha cômica, “átrio” virando “trio” em ambos os textos), Denise terá exposto mais uma vez o golpe de requentar traduções sem pagamento de direitos, bandeira de subdesenvolvimento cultural que infelizmente está longe de ser novidade no Brasil. Se você também não gosta de plágio, ajude a espalhar a notícia.”

Incrível, não? A blogueira Denise Bottman denuncia uma desonestidade intelectual e é ameaçada de processo pelos autores da desonestidade intelectual. O máximo, não? Ainda não. Veja o que a Denise publica hoje em seu blog:

justiça e internet

sexta-feira recebi uma carta de citação da quarta vara cível de são paulo.

numa ação movida pela editora landmark e pelo sr. fábio cyrino, estou sendo processada por pretensas calúnias contra os reclamantes, por ter publicado no nãogostodeplágio provas mostrando a prática de plágio nas traduções de persuasão, de jane austen, e o morro dos ventos uivantes, de emily brontë, ambas publicadas pela referida editora em 2007.

além de vultosa indenização por pretensos danos morais e materiais, os reclamantes solicitaram:
– “publicidade restrita”, isto é, que o processo corresse em sigilo de justiça,
– a remoção do blog nãogostodeplágio da internet, invocando o “direito de esquecimento”,
– “antecipação dos efeitos da tutela de mérito”, isto é, que a justiça determinasse a remoção imediata do blog antes da avaliação do mérito da ação impetrada.

o juiz, em seu despacho, não determinou segredo de justiça e negou a antecipação de tutela, por considerar que se trata de uma questão complexa, envolvendo discussão a respeito da liberdade de expressão e crítica na internet, sendo necessária uma análise mais apurada dos fatos para verificar a verossimilhança das alegações.

entre as variadas reações extrajudiciais e judiciais que tenho enfrentado a partir das denúncias feitas aqui no nãogostodeplágio, esta é a primeira que solicita a remoção do blog.

isso, a meu ver, extrapola o campo em que devo me defender contra acusações de pretensa denunciação caluniosa e adquire envergadura mais ampla. estamos aqui numa seara muito mais delicada e fundamental, a saber, a simples e básica necessidade de constante defesa do estado de direito, contra tentativas de amordaçamento e atropelo das garantias democráticas da sociedade.”

Ou seja, ela não estava apenas sendo processada. A editora Landmark também estava pedindo a censura do blog por ele ter denunciado um processo de desonestidade intelectual.

Renovo o pedido do Sérgio Rodrigues: podem plagiar a notícia.

Amsterdam

Ian McEwan é atualmente um escritor de best-sellers. Legítimo representante da gloriosa tradição do romance britânico, linhagem iniciada no século XVIII com Fielding e Richardson, passando pelos séculos XIX e XX sempre com nomes de grande envergadura (Dickens, as Brontës, Hardy, Woolf, etc). Seus últimos romances, Na Praia, Sábado e Reparação (que ganhou uma razoávelzinha adaptação cinematográfica com um horrendo título) ganharam um lugar na galeria de grandes obras para o grande público, onde temas espinhosos antes bastante explorados passam a ocupar um espaço menor. O que antes era explícito, passa a ser sugerido.

O que não significa que os temas que lhe valeram o apelido de Ian Macabre estejam ausentes.  Apenas mais sofisticados.

Em Amsterdam estão todos presentes.  Sexo e morte. Estupro e suicídio. Mas, subjacente, um conflito que tem se delineado na obra do autor, que marca a passagem da esperança para o cinismo, da possibilidade da luta para a aceitação da inevitabilidade da derrota. O que em obras anteriores do autor se configurava como uma abertura para a luta política, mesmo que utópica, em Amsterdam torna-se impossível.

O conflito político entre Julien Garmony, Vernon Halliday e Clive Linley explode em derrota para todos. Inclusive a solução evasiva de refúgio na arte configura-se  como fracasso e derrota. Derrota que posteriormente seria encampada por McEwan, como em Sábado. De qualquer forma temos uma obra de transição, entre a dissolução trágica e utópica de “First Love, Last Rites” e “Cement Garden” e o conformismo neoconservador de “Sábado” e “Reparação“. Ainda assim uma obra grande e merecedora da atenção.

A vida é chata, mas a morte, um tédio

Will Self é um dos escritores mais celebrados da nova safra inglesa. Midiático, foi uma espécie de sex symbol cult do início dos anos 90. Talentoso com as palavras, também fez carreira como jornalista, embora seu episódio mais famoso na área tenha sido ter sido demitido do jornal “The Observer” porque, enquanto cobria a eleição para primeiro ministro em 1997, cheirou heroína no jato de campanha de John Major.

Mas Self tem talento com as palavras. E um certo pendor para a sátira grotesca, tanto que em seu primeiro romance, Cock and Bull, um homem e uma mulher desenvolvem órgãos sexuais opostos, em Great Apes (Grandes Símios) um artista acorda em um mundo onde os chimpanzés são racionais e os humanos não (hum… já vi isso antes) e neste How the Dead Live (Como vivem os mortos) a personagem principal, Lily Bloom, vive (quer dizer, morre) em um subúrbio de Londres após sucumbir ao câncer com um feto abortado e calcificado, seu filho de nove anos morto décadas atrás e três criaturas nojentas feitas de sua própria gordura, enquanto observa a não muito diferente vida dos vivos.

Se a imagética do livro é riquíssima, cheia de alusões literárias e culturais, metáforas criativas, o enredo e a construção dos personagens carece de cuidados.

Após morrer, Lily Bloom (Bloom, sacou? Maneiro, esse Self) passa a flanar pelas ruas de Londres, principalmente em seu subúrbio Dulston (Dulston, mistura de dull com Dalston), de onde a velha morta tece seus ácidos comentários anti-semitas (ela é judia americana, como a mãe de Self), criticando a peruíce emergente de sua filha Charlotte, a auto-destruição junkie de sua filha mais nova Natasha, o insuportável peso do ser classe média consumista e vazio nessa virada de século, enfim.

Mas se o mote é excelente, a realização, principalmente da personagem, poderia ter recebido melhor tratamento. A acidez, a falta de envolvimento emocional, a distância em relação às próprias filhas e os comentários em relação à vida sexual (ou falta de) dela e das próprias filhas parecem deslocados na boca da velha judia sexagenária.

De qualquer forma é uma leitura engraçadíssima e tem suas qualidades. Principalmente o retrato da atual vida londrina, perdida entre a falta de significado e o consumismo (e auto-consumismo) desbragado.

Outros Tiros

Vocês já devem ter percebido a imagem ao lado, atualmente a que tem um jumento com chapeuzinho de Papai Noel, né? Pois é. É uma parceria do meu blog com o site Os Viralata. Os Viralata é um site de venda de literatura independente. Não é uma editora. É um site de vendas. E é de literatura independente. Isto é, o cara (o autor) financia de seu próprio bolso uma tiragem de seu livro e o site vende. Dá lucro? Sei lá. Mas pra quem tem talento (ou acha que tem) e não encontra espaço, nossa época de tecnologias cada vez mais acessíveis permite que, com um esforço pessoal não necessariamente sobrenatural, consiga se fazer ouvir em um mercado consumidor capaz de absorver essa produção. O site inclusive ensina como publicar, imprimir, registrar, produzir a capa e tudo. Quem não tiver a manha de fazer por conta própria pode contratar o site, que pertence a um produtor gráfico, para fazer o trabalho sujo por ele. Ou então, pode produzir o livro como e-book, o que facilita a distribuição e barateia os custos.

E como o site é independente, os autores são independentes (Os Viralata não aceita vender livros produzidos por editoras, por menor que sejam, apenas livros produzidos por autores, por conta própria), a divulgação também é independente. O dono do site, o Albano Martins Ribeiro, pede que blogs coloquem seu banner com link para o site dOs Viralata e em troca o blogueiro recebe um livro de presente. Um jabazinho básico…

E o livro que eu recebi de presente foi Outros Tiros – Contos e Mentiras de Matos Mangusto.

Embora a categoria da obra seja a de “contos”, difícil classificar o que Matos Mangusto escreve na mesma categoria do que  comumente conhecemos por “conto”. Afinal, um conto varia de uma a cerca de quarenta páginas. A concisão de Mangusto lhe permitiu escrever micro contos de uma a três linhas. E não há nada que seja mais extenso que duas páginas.

Se na pós-modernidade a fronteira dos gêneros começou a ser cada vez menos definida, a dificuldade em classificar o que Mangusto escreve é compreensível. Varia do aforismo à crônica. Um dos exemplos de micro-conto é o que está na página 32

“Soturno

Um sorriso poderia ter mudado tudo, mas agora é tarde.”

Enfim… certamente algo que não se encontra facilmente nas prateleiras de auto-ajuda, de romance de vampiros ou de história com cachorrinhos ou gatinhos. Mas que também vale a pena.

Outros autores que comercializam seus livros pelos Viralata são os blogueiros Alex Castro, que tem seu romance “Mulher de um homem só” vendido pelo site e Luiz Biajoni, que tem três livros já publicados e comercializados.

Retrospectiva 2009 – Livros

Eu quero uma casa no campo, onde eu possa plantar meus amigos, meus discos e agora meus livros.

Uma auto-ajuda corporativa e uma “biografia” de um time de futebol. Nenhum vale uma pipoca molhada: (Leituras)

Ah… como era safadinha, essa nazista! (Leituras)

O que uma HQ publicada em folhetim tem a ver com um dos maiores clássicos da literatura francesa e mundial? Tudo: (Gemma Bovery)

Os marcianos não são verdinhos: (Distopias científicas)

Benjamin Button o caramba! A melhor história de trás pra frente é de Sean O’Faolain: (De trás pra frente)

O velho alemão tinha razão, já dizia Marshall Berman: (Tudo que é sólido desmancha no ar)

Ah… a adolescência e seus bailes! (Seu primeiro baile)

Aristocracia + Burguesia = Orgulho e Preconceito: (Uma verdade universalmente conhecida)

Que Dan Brown o que! O rei do romance de mistério é o Mion! (O Código Da Vinte)

Como sofreu, a pobre Tess… mas o romance é o máximo: (E o presidente dos imortais terminara seu jogo)

Pra quem perdeu, agora só no ano que vem: (Festa do Livro da USP)

XI Festa do Livro da USP

Quem puder não perder, não perca. No prédio da História/Geografia.

Literatura ruim é melhor que literatura nenhuma?

Cada vez que surge um novo fenômeno de vendas no campo literário surge a velha discussão: vale a pena? Uns argumentam que sim. Dizem que a literatura infanto-juvenil ruim serve como uma “introdução” a jovens que nunca leriam nada com mais de quinze páginas e cujas páginas não contivessem mais de 3/4 de seu espaço tomado por figuras. Outros discordam. Dizem que quem lê Harry Potter não lê outra coisa. Não passa a ser consumidor de literatura. Passa a ser consumidor do próximo fenômeno de marketing, seja ele literário ou não.

A minha opinião é… eu não tenho opinião alguma formada sobre isso. Ainda. O próprio fato de ter usado termos como “consumidor” e não “leitor” já dá mostras da complexidade do problema. E aí até a velha distinção entre “alta literatura” e “subliteratura” fica superada, pois atualmente a cultura passou a ser vista como entretenimento e como um setor da economia. É o velho slogan do “leia o livro, assista o filme, ouça o disco”, rótulo que pode ser aplicado tanto ao “sério” e “culto” Ian McEwan para o “superficial” e “infantil” Harry Potter.

Tudo isso pra dizer que neste fim de semana assisti a “Crepúsculo“, filme baseado no romance de Stephanie Meyer.  Assisti não seria bem o termo. Eu acompanhei o filme, enquanto comia pizza e conversava com minha esposa e cunhado, a partir do terço inicial para o seu final. O que dizer de um filme/livro que conta a história de um triângulo amoroso entre uma mocinha, um vampiro e um lobisomem? E que o vampiro bonzinho faz parte de uma família de vampiros bonzinhos e “vegetarianos” (eles só sugam o sangue de animais, não de gente)? E que o romance dos dois é puro e virginal como um romance entre uma mocinha branca do sul dos Estados Unidos com um carinha que usa o anel de castidade dos Jonas Brothers (afinal de contas, Stephanie Meyer é mórmom praticante e sua saga serve também para embrulhar bem bonitinho o conceito de moralidade proto-cristã da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias)? Não há muito o que falar sobre o filme, mais do que haveria para falar de Bob Esponja, Padrinhos Mágicos ou Hannah Montana.

Que a sociedade americana, e por conseguinte a sociedade ocidental, está em franco e rápido processo de infantilização, cuja proliferação de “desenhos adultos” (não estou falando de paródias pornôs, mas de Simpsons, Family Guy e similares), transformação de baile de debutantes em bailinhos Disney (quando outrora eram o rito de passagem para a vida adulta – casamento, sexo e saída da casa dos pais inclusos) e a proliferação de especialistas para todas as áreas da vida privada, nós já sabemos. Que isto significa que, especilmente na indústria do entretenimento americana, a complexidade dos temas e a qualidade dos produtos ficma seriamente comprometidas em favor de uma “palatabilidade” mais geral possível, também.

Porém se o terreno da “coerência ideológica” está perdido, visto que a recente adaptação cinematográfica de Atonement (no Brasil recebeu o quase idiótico título de “Desejo e Reparação” – o que mostra a necessidade quase patológica de que tudo seja explicadinho e digerido nos mínimos detalhes para o deleite da massa) equipara em termos de “mercadoria” tanto a alta cultura quanto a subliteratura, ao menos no quesito “qualidade” há ainda alguma reserva. Resta saber por quanto tempo.

P.S. Sobre a questão da infantilização da sociedade, há este interessante artigo. Sobre o uso da ficção e da mitologica como meio de transmissão de valores morais, já escrevi aqui.

P.P.S. Para não dizer que o filme não presta para absolutamente nada, dá para dizer que Kristen Stewart é uma atriz boazinha, como seu papel de adolescente louquinha pra dar em “Na Natureza Selvagem” havia mostrado. Mas o grande achado do filme é a beleza (ainda que com pouco talento) de Ashley Greene.

P.P.P.S. Com um enfoque um pouco diferente (e muito mais bem escrito), o jornalista Maurício Stycer escreveu em seu blog um artigo que foi tuitado como “um tiozinho tentando entender Crepúsculo e Lua Nova”: aqui. Tiozinho. Pois é… foi assim que me senti.

E o presidente dos imortais terminara seu jogo

Recentemente o blogueiro e escritor Sérgio Rodrigues fez um concurso de melhores inícios de romances, ganho com toda justiça por Tolstói e seu “Ana Karenina“. Mas se tivesse feito um concurso para melhor final de romance, meu voto seria dado para a primeira frase do parágrafo final de “Tess of the D’Urbervilles“: “Justice” was done, and the President of the Immortals, in Aeschylean phrase, had ended his sport with Tess. (A “justiça” foi feita, e o Presidente dos Imortais, em uma frase Esquiliana, terminara seu jogo com Tess”.)

A referência à tragédia clássica faz justiça à obra-prima de Thomas Hardy. Os elementos estão lá: o orgulho que precede a queda, ainda que tal orgulho seja obra de um parvo, bêbado e idiota; o erro trágico cometido pela família ignorante e gananciosa; a viravolta, mudança de acontecimentos que transformam a felicidade em infelicidade, ainda que a felicidade houvera sido brevíssima e ilusória; a morte trágica e por fim o determinismo, mas não mais imputado por deuses ciumentos e manipulativos, mas um determinismo causado por condições materiais e sociais.

tess

O pessimismo crônico de Hardy em relação ao homem está presente. O estilo elegante, hábil em produzir no romance tanto a fala em “dialeto” dos pobres e camponeses como a fala escolarizada dos burgueses também. E como em “Jude, the Obscure“, a certeza absoluta de que o esforço não recompensará os não aquinhoados pela fortuna.

Pois bem, vamos à história. Após saber que é descendente de uma antiga linhagem de nobres, Jack Durbeyfield convence sua filha mais velha, Tess, a procurar seus parentes ricos e apresentar-se ao novo ramo da família. Tess é estuprada, engravida de seu primo, passa a ser malvista pelos aldeões de onde mora, testemunha a morte de seu bebê, cujo enterro e ofício fúnebre é negado pelo presbítero de sua aldeia pelo fato dele ser fruto de uma fornicação. Acha pouco? Pois bem, Tess vai embora de sua aldeia e se radica em uma fazenda de leite, onde conhece e se apaixona por Angel Clare, um filho de um pastor que quer aprender o ofício para abrir sua própria fazenda. Ao casar com Angel, que se considerava um “livre-pensador”, Tess pensa ter encontrado a felicidade, mas é abandonada na noite de núpcias pelo marido quando este descobre que Tess não é mais virgem, muito embora ele próprio tivesse levado uma vida libertina antes de sua estada na fazenda. Tess volta para sua aldeia, onde vê todos os habitantes da aldeia perderem suas terras que garantiam o sustento daquela população, num processo conhecido como “enclosure“,  que nada mais é que a transformação de antigas áreas públicas e de uso comunitário em propriedade privada.  Acabou? Não. Ela sofre, sofre, sofre e sofre ainda mais. Depois de muito curtir seu sofrimento e ter um breve e ilusório período de amor com um arrependido (e imbecil) Angel, que voltara tarde demais não podendo mais redimí-la, Tess é executada por ter assassinado Alec, seu primo, estuprador e amante.

Porém mais que mero conteúdo psicológico e moral, “Tess of the D’Urbervilles” retrata com argúcia e lirismo o momento do capitalismo da Inglaterra no final do século XIX, o quanto esse mesmo capitalismo tomava cada vez mais espaços de formas de vida tradicionais e centenárias e o início da mecanização agrícola. Inclusive, numa cena onde Tess e Angel levavam o leite para ser embarcado no trem rumo a Londres, no diálogo entre os dois enamorados há quase uma explicação sobre o processo de apagamento das relações sociais na produção das mercadorias como consequência da reificação.

Outro aspecto notável no romance é que pela primeira vez na literatura o campo passa a ser descrito como o lugar do trabalho, da exploração, do sofrimento e da vida dura. Diferentemente do que sempre acontecera, onde a oposição campo x cidade sempre se deu na base de associar a cidade ao vício, ao pecado, ao trabalho, à violência (basta lembrar dos romances de Charles Dickens e seus órfãos sofredores) e o campo ao bucólico, ao pacífico e à natureza.

O autor, Thomas Hardy, foi severamente criticado na época tanto pelo pessimismo de sua obra quanto pela suposta licenciosidade de sua obra, que feria o código de moralidade de um vitorianismo tardio puritano e recalcado. Tais críticas chegaram ao nível do insuportável após o lançamento do romance subsequente, “Jude, the Obscure”, praticamente uma Tess de calças, onde o personagem principal luta com todas as forças que lhe são possíveis para perceber ao final de sua vida (curta, como a de Tess) que não há como lutar contra forças históricas e contra a ideologia que domina as forças de produção. Após a repercussão terrível de “Tess” e “Jude”, Hardy abandona o romance e passa a se dedicar exclusivamente à poesia.

O romance, um calhamaço de 592 páginas, foi adaptado para o cinema por Roman Polanski, o também estuprador de uma adolescente recentemente preso na Suíça, estrelado por uma deslumbrante Nastassja Kinski, então com 19 anos.

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Se por um lado o filme fracassa ao retratar as relações sociais de então, concentrando-se principalmente nos desencontros das relações humanas (aliás, o filme ganhou um ridículo subtítulo em português por ocasião de seu relançamento em DVD: Tess – Uma lição de vida. Lição de vida do quê? A coitada da Tess só fez cagada e no final morreu por causa disso), por outro o filme reproduz o tratamento quase fetichista que o narrador do romance dedicava à protagonista. A beleza, a sensualidade ingênua mas abrasadora, os lábios carnudos e vermelhos narrados no romance estão lá presentes no filme. Presentes na beleza ao mesmo tempo arrebatadora e inibida de Tess, representada por Nastassja.

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Thomas Hardy poderia até não aprovar a adaptação cinematográfica de sua obra (recentemente adaptada para a televisão em uma minissérie de quatro capítulos produzida pela BBC), mas certamente se orgulharia da Tess interpretada por Nastassja Kinski.