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A piedade como protesto

Depois do romantismo paródico de Puchkin, o autor que definiu a cara da literatura russa na primeira metade do século XIX foi Nikolai Gogol. O que eu conhecia sobre Gogol se resumia em uma versão da peça “O Inspetor Geral“, encenada a mais de dez (talvez quinze) anos dirigida por Antonio Abujanra e a peça “The Overcoat“, baseada no conto O Capote, pelo grupo britânico Gecko.

Ambas peças tratam do mundo do funcionalismo público russo na época do império. Corrupção, tráfico de influência, abuso de autoridade, tudo o que faz de ambas as montagens algo estranhamente contemporâneo e familiar, a despeito das diferenças temporais e geográficas que separam o Brasil do século XXI da Rússia do século XIX.

Mas na leitura de “O Capote” e de outra de suas novelas, “Diário de um Louco” essa semelhança atinge sua aproximação máxima.

Diferentemente da caracterização estilizada, romântica e exagerada dos personagens em Puchkin, os personagens de Gogol não fazem parte do universo da nobreza, da corte e do exército (os extratos elevados da sociedade – normalmente sujeitos à representação literária). São os funcionários mais baixos dentro do departamento de estado. Os escrivões. Que vagam pelas ruas sem ter dinheiro para coche, que não tem dinheiro para aquecimento na gélida São Petersburgo, que não tem perspectiva.

Mas diferentemente do que se imaginaria, não há a representação realista-naturalista. E isso faz do maravilhoso, sobrenatural (realismo fantástico, quase) presente nos contos de Gógol cada vez menos estranho à realidade.

Além do elemento sobrenatural, o que permite que o público leitor de então (uma parcela ínfima de qualquer sociedade – ainda mais na Rússia) aceite ler relatos sobre a classe baixa é o sentimento de piedade que o leitor passa a ter pelos protagonistas. Akaki Akakiévich é parvo ao extremo. Sua incapacidade de se expressar, seu sonho de aceitação graças ao seu novo capote, a humilhação que recebe de seus colegas, das autoridades policiais, tudo recebido de maneira estóica, com sofreguidão e resignação, cativam a simpatia do leitor para a pobre criatura.

Poprishchin, em “Diário de um Louco”, por outro lado, cativa pelo cômico. A progressiva escalada em direção à loucura, percorrida por este outro funcionário público, também fascinado pela insersão social, nos proporciona um dos mais interessantes relatos sobre a esquizofrenia na literatura. O fim de ambos, previsivelmente, é trágico, ainda que cômico ou sentimental.

E a tragicidade, o sentimentalismo e o sobrenatural são as armas que permitem que tais relatos contundentes sobre a situação social na Rússia penetrem, subrepticiamente, nos palacetes e salas de leitura da nobreza e burguesia russas. O deleite com a própria miséria é também algo que nos é bastante caro. Como Machado de Assis e suas crônicas da cidade do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo escravagista e iluminista, nos mostra.

O Capote

Após longo e tenebroso inverno, voltei a uma das atividades que mais gosto e, proporcionalmente, menos faço: ir ao teatro.

Na verdade a história da minha ida a esta peça está ligada a uma disciplina opcional que escolhi na faculdade: introdução à literatura russa (???). Pois é. Numa conversa informal com um aluno aqui de onde trabalho descobri que o Teatro Popular do Sesi, aqui em SP, estava com a peça The Overcoat/O Capote, do Gecko Theatre Company, uma companhia internacional com atores do mundo todo sediada em Ipswich, Inglaterra. O projeto é um trabalho conjunto do Sesi com o British Council, que faz esse intercâmbio Brasil-Inglaterra de maneira bem interessante. A produção anterior havia sido Cymbeline, peça pouco conhecida de Shakespeare, encenada de maneira brilhante pela companhia Kneehigh Theatre em 2008. Excelente.

Mas, o que a introdução à literatura russa tem a ver com isso? Bem, uma das obras a serem estudadas neste semestre é justamente “O Capote“, de Nicolai Gogol. Conto que narra a história de Akaki, escriturário pobre atormentado pelos colegas pelo fato de ter um capote (peça importantíssima na gélida Rússia do século XIX) esfarrapado. Ao comprar um novo capote, vê a mudança de tratamento que recebe, que dura pouco tempo pois o tem roubado.

Temas completamente atuais como discriminação social, exploração do trabalho, ritmo maquinal e cronometrado são abordados na peça de maneira interessantíssima. Enquanto o Cymbeline da Kneehigh era falado em inglês, com legendas projetadas em português, o Capote do Gecko é falado em português (apenas o personagem principal), francês, inglês, espanhol, italiano, alemão e japonês, tudo ao mesmo tempo agora. E a narrativa é sustentada através do que o grupo chama de “teatro físico”.

Quem perdeu, perdeu.