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As mulheres e a ressurreição

Já copiei antes e continuarei fazendo, textos do professor de liturgia e homilética Luiz Carlos Ramos.

Este é um belíssimo sermão sobre a ressureição e o papel das mulheres. Quem há de negar o aspecto libertário, revolucionário de Jesus e do Evangelho? Só os religiosos o fazem, ao insistirem em cabrestos, interditos e maldições sobre as mulheres. Coisas que jamais passaram perto dos ensinamentos de Jesus.

Genis, Marias e Ângelas
Surpresas e metamorfoses pascais (Jo 20.1–18)

Luiz Carlos Ramos
(Aos alunos e alunas do 3º. Ano Noturno
do Curso de Teologia—2006)

“No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao sepulcro de madru­gada, sendo ainda escuro, e viu que a pedra estava revolvida. Então, correu e foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, a quem Jesus amava, e disse-lhes: Tiraram do sepulcro o Senhor, e não sabe­mos onde o puseram. Saiu, pois, Pedro e o outro discípulo e foram ao sepulcro. Ambos corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro; e, abaixando-se, viu os lençóis de linho; todavia, não entrou. Então, Simão Pedro, seguindo-o, chegou e entrou no sepulcro. Ele também viu os lençóis, e o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus, e que não estava com os lençóis, mas deixado num lugar à parte. Então, entrou também o outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, e viu, e creu. Pois ainda não tinham compreendido a Escritura, que era necessário ressuscitar ele dentre os mortos. E voltaram os discípulos outra vez para casa.

“Maria, entretanto, permanecia junto à entrada do túmulo, chorando. Enquanto chorava, abaixou-se, e olhou para dentro do túmulo, e viu dois anjos vestidos de branco, sentados onde o corpo de Jesus fora posto, um à cabeceira e outro aos pés. Então, eles lhe perguntaram: Mulher, por que choras? Ela lhes respondeu: Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram. Tendo dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus em pé, mas não reconheceu que era Jesus. Perguntou-lhe Jesus: Mulher [gr. Gyne], por que choras? A quem procuras? Ela, supondo ser ele o jardineiro, respondeu: Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei. Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, voltando-se, lhe disse, em hebraico: Raboni (que quer dizer Mestre)! Recomendou-lhe Jesus: Não me detenhas; porque ainda não subi para meu Pai, mas vai ter com os meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus. Então, saiu Maria Mada­lena anunciando [gr. aggellousa] aos discípulos: Vi o Senhor! E con­tava que ele lhe dissera estas coisas.” (Jo 20.1 – 18)
Introdução

Como se sabe, o Evangelho de João foi um dos últimos escritos do Novo Testa­mento a serem redigidos, num período já bem tardio. Talvez por isso há nele vários elementos que o tornam bastante distinto dos demais (dos chamados “sinóticos”): o tom afetivo, o estilo assincrônico, sua linguagem poética e, parti­cularmente, sua abordagem singular de certos episódios, nos quais as crianças e as mulheres ganham destaque especial.

A narrativa joanina da ressurreição de Jesus é bastante peculiar nesse aspecto. Há, notoriamente, um conflito entre diferentes tradições que evidenciam ten­sões entre os seguidores de Pedro (que é o primeiro a entrar no sepulcro), João (como o jovenzinho que foi o primeiro a crer), e Maria (como a que fica do lado de fora chorando). Nessa costura precária, são as crianças as primeiras a crer (cf. v. 8), e as mulheres, as primeiras a testemunhar o milagre da ressurreição (cf. vv. 17 – 18), enquanto o primeiro “papa” volta pra seu barco e sua pescaria.

Nesta reflexão, entretanto, a partir especificamente dos versículos 11 – 18, gostaria de chamar a atenção para algumas surpresas e metamorfoses pascais vivenciadas por uma mulher em particular, colocada em evidência pela narra­tiva, que pode ser paradigmática de todas as mulheres e de toda a humanidade: trata-se de Maria Madalena.
Geni…

A tradição se encarregou de difundir a suposta má fama dessa mulher chamada Maria de Magdala: pecadora, endemoninhada (por sete espíritos), prostituta (ainda que as bases exegéticas dessa tradição sejam bastante frágeis). Se tomar­mos como referência a narrativa lucana da unção dos pés de Jesus por uma certa pecadora, freqüentemente confundida com Maria Madalena, podemos descobrir como os fariseus e as pessoas em geral costumavam se referir a mulheres como ela: “mulher-pecadora”. Neste caso, “mulher” e “pecadora” são praticamente sinônimos.

Em grego, mulher é gyne, de onde derivam as palavras portuguesas “gene”, “genética”, “gênero”, “gênesis” e o nome próprio “Geni”. Chico Buarque tem uma composição ontológica na qual narra a triste saga de uma personagem igualmente difamada, em quem todos adoravam ativar pedras e excrementos.

Mas voltemos ao sepulcro. Lá está a nossa Maria, chorando, meditando incon­formada sobre aquele túmulo violado, aqueles lençóis jogados no chão, misteri­osos, aquele sudário enigmático enrolado num canto, e dois homens suspeitos velando à cabeceira e aos pés de uma lápide vazia.

É nessa hora que ela escuta alguém chamando-a: “— Geni! [Gyne]” Ela se volta, e mal consegue distinguir um vulto, no lusco-fusco da aurora, os olhos ainda embaçados pelas lágrimas e as pupilas dilatadas pelas trevas do sepulcro. Seria o jardineiro? Estaria ele com o corpo do mestre? Então, os ouvidos reve­lam o que os olhos não podem mostrar: a voz torna a chamá-la, mas desta vez pelo nome…
… Maria

Não se sabe ao certo a origem do nome “Maria”. Uma das teorias supõe ser esse nome de origem egípcia e uma derivação de “Mirian”. Dos vários sentidos propostos, um me chamou a atenção: “obstinada”.

Parece que esse significado se encaixa perfeitamente à nossa personagem. É a primeira a ir ao sepulcro, sendo ainda escuro. Anuncia o roubo do corpo do Mestre aos companheiros, mas volta para junto do túmulo. Enquanto os outros discípulos “voltam para os seus”, para suas casas, para seus afazeres, Maria continua velando à entrada do túmulo.

A recompensa da sua obstinação é o privilégio de ter sido a primeira a se encon­trar com o Cristo ressurreto.

Quando Geni ouve aquela voz chamando: “— Maria!”, acontece uma meta­morfose maravilhosa: ela reconhece o Mestre Vivo, e exclama: “— Rabino, meu Mestre!” E, literalmente, o abraça.

Então, o Rabino lhe diz que ela precisa deixá-lo ir: “— Não me segures, por­que ainda não subi para o meu Pai, mas vai ter com os meus irmãos, e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus.”

É nessa hora que a Geni, que havia se reconhecido como Maria na voz do Mes­tre, converte-se, por essa mesma palavra, em…

… Ângela

Diz o texto que “então saiu Maria Madalena anunciando aos discípu­los: Vi o Senhor!” O termo grego relativo a “anúncio”, usado aqui na forma de um verbo no particípio, deriva de aggelos, de onde temos a palavra “anjo” e o nome próprio “Ângela”, ou “Angélica”.

A mulher difamada, em quem se costumava atirar impropérios, no encontro com o Mestre ressurreto redescobre sua identidade e até amplia seu horizonte existencial. Como na música de Chico Buarque, é a difamada Geni, que se torna a portadora da salvação da cidade. Maria torna-se apóstola. Sim, a primeira. Testemunha angélica da vitória da vida sobre a morte. Anunciadora da boa nova: “A morte morreu! A morte morreu!”
Conclusão

Esta narrativa de João é uma espécie de Gênesis às avessas. Lá, as pessoas viviam, qual borboletas, num belo jardim, e como anjos, desfrutavam da com­panhia divina na viração do dia. Mas, um dia, num encontro diabólico com a serpente, essas pessoas mergulharam num casulo mortal, que as tornou vulne­ráveis e sujeitas, como pobres lagartas, às dores e pesares de uma vida de pecado, sem a beleza nem a leveza das borboletas, porque perderam suas asas da liberdade.

Por sua vez, o Evangelho de João nos fala de uma nova gênese, ocorrida, desta vez, no tétrico e fúnebre jardim onde Jesus havia sido sepultado. Jesus faz o caminho inverso, rompendo o casulo da morte e ressurgindo com o nascer do sol.

E ele foi só o primeiro. Porque o nosso Mestre vive, e vive eternamente, nós podemos ter esperança, e também podemos experimentar, como a Geni da nossa história, a metamorfose de Maria capaz de nos transformar a todos em “anjos” e “ângelas” anunciadores da beleza e da leveza da ressurreição.

Sim, hoje, a morte morreu e Jesus está vivo!

E porque Ele vive, eu também viverei, nós também viveremos!

Aleluia!

Feliz páscoa!

O Ciclo Pascal

O ciclo pascal

Luiz Carlos Ramos

O Ciclo Pascal — que compreende a Quaresma, a Semana Santa, o Tempo Pascal propria­mente dito, e encerra-se com o Pentecostes — formou-se a partir de um processo de reflexão e sis­tematização do cristia­nismo que vai do pri­meiro ao quarto século da era Cristã. A partir deste ciclo se constituiu todo o calendário litúrgico.

Nas comunidades primiti­vas, era comum a reunião no primeiro dia de cada semana na qual celebrava-se a memória de Jesus. A origem do culto cristão remonta a essa “Páscoa Semanal”, que ocorria no chamado “Dia do Senhor”.

Em boa parte por influência do judaísmo cristão, desenvolveu-se uma celebra­ção anual da Páscoa como um “grande dia do Senhor”, cuja festa se prolongava por cinqüenta dias, sendo o último, o dia de chegada do Espírito, o Pentecostes Cristão, isso já no século II.

No século IV, desenvolveu-se a tradição de reviver e refletir de um modo mais sistematizado, os momentos da paixão, isso deu origem às celebrações da Semana Santa. Desde o século III as vésperas da Páscoa já eram dias de refle­xão. Os catecúmenos que por dois anos vinham sendo preparados, agora eram acompanhados por toda a comunidade. Inspirando-se nos quarenta dias de pre­paro de Jesus para seu ministério, nasceu o período da quaresma. Assim, em torno da celebração da morte e ressurreição de Jesus, desenvolveu-se todo o Ciclo Pascal do Calendário Litúrgico Cristão, marcado pela penitência e confis­são, mas também pela alegria e exultação do crucificado e ressuscitado.

A Quaresma é o período no qual se enfatiza a importância da contrição, do preparo e da conversão. Inicia-se no quadragésimo dia antes da Páscoa (não se contam os domingos). O início na Quarta-feira de Cinzas retoma à tradição bíblica do arrependimento com cinzas e vestes de saco (Jn 3.5 – 6). É um momento oportuno para refletir sobre a confissão e o valor do perdão de Deus.

Sua espiritualidade enfatiza momentos de preparo na história bíblica geral e da vida de Jesus:

  • Quarenta dias de Jesus no deserto (Mt 4.2; Lc 4.1ss);
  • Quarenta dias de Moisés no Sinai (Êx 34.28);
  • Quarenta anos do povo no deserto (Êx 16.35);
  • Elias em direção ao Horeb (1Rs 19.8).

A Semana Santa tem início no Domingo de Ramos, celebração de Cristo como o Messias, salvador dos pobres, o rei dos humildes. Reflete-se, nessa semana, passo a passo, os últimos momentos da vida de Jesus.

Este é o momento da vigília de preparo para a ressurreição.

Sua espiritualidade chama-nos a atenção para os momentos finais de Jesus até o ápice de sua paixão:

  • A Santa Ceia (Mt 26.17 – 30);
  • O Lava-pés (Jo 13.1 – 17);
  • Jesus no Getsêmani (Mt 26.36 – 46; Mc 14.26 – 31);
  • O julgamento, sepultamento e a crucificação (Mt 27; Mc 15; Lc 23; Jo 19).

A Páscoa¸ propriamente, é a festa da ressurreição e da libertação. Um novo Êxodo ocorre, e a humanidade passa do cativeiro da morte para a vida.

Sua solenidade pode iniciar-se já na Quinta-Feira Santa (instituição da ceia), que dá início ao chamado Tríduo Pascal. Contudo a celebração da ressurreição começa com uma vigília na noite de sábado encontrando sua plenitude no rom­per da aurora do Domingo da Páscoa, quando Cristo é lembrado como o sol da justiça que traz a luz da nova vida, na ressurreição.

A espiritualidade norteadora da Páscoa aponta para a ressurreição nos mais variados relatos das comunidades do século I d.C.:

  • A ressurreição (Mt 28.1 – 20; Mc 16.1 – 8; Lc 24.1 – 12; Jo 20.1 – 18; At 1.14);
  • Cânticos Pascais (Sl 113 ao 118 e Êx 12).

Entre os hebreus, era comum a celebração da chamada “festa das semanas” ou Pentecostes, isso porque ela se dava sete semanas, ou cinqüenta dias, após a Páscoa. Nela, o povo dava graças ao Senhor pela colheita. Mais tarde, adquiriu mais uma dimensão celebrativa, a da proclamação da lei (instrução) no Sinai, cinqüenta dias após a libertação do Egito.

Na era cristã, o Pentecostes tornou-se o último dia do ciclo pascal, quando celebra-se a chegada do Espírito Santo como aquele que atualiza a presença do ressuscitado entre nós, dando força para que as comunidades sejam testemu­nhas de Jesus na história.

A espiritualidade que nos orienta nesse período fala da presença consoladora do Espírito que semeia nos corações a esperança do Reino de Deus e nos impul­siona para a missão:

  • Festa das semanas (Êx 34.22; Lv 23.15);
  • Jesus promete o Consolador (Jo 16.7);
  • Jesus ressuscitado sopra seu Espírito (Jo 20.22);
  • A chegada do Espírito Santo no dia de Pentecostes (At 2).

Extraído do excelente blog de liturgia e espiritualidade Texto e Textura.