Recentemente o blogueiro e escritor Sérgio Rodrigues fez um concurso de melhores inícios de romances, ganho com toda justiça por Tolstói e seu “Ana Karenina“. Mas se tivesse feito um concurso para melhor final de romance, meu voto seria dado para a primeira frase do parágrafo final de “Tess of the D’Urbervilles“: “Justice” was done, and the President of the Immortals, in Aeschylean phrase, had ended his sport with Tess. (A “justiça” foi feita, e o Presidente dos Imortais, em uma frase Esquiliana, terminara seu jogo com Tess”.)
A referência à tragédia clássica faz justiça à obra-prima de Thomas Hardy. Os elementos estão lá: o orgulho que precede a queda, ainda que tal orgulho seja obra de um parvo, bêbado e idiota; o erro trágico cometido pela família ignorante e gananciosa; a viravolta, mudança de acontecimentos que transformam a felicidade em infelicidade, ainda que a felicidade houvera sido brevíssima e ilusória; a morte trágica e por fim o determinismo, mas não mais imputado por deuses ciumentos e manipulativos, mas um determinismo causado por condições materiais e sociais.
O pessimismo crônico de Hardy em relação ao homem está presente. O estilo elegante, hábil em produzir no romance tanto a fala em “dialeto” dos pobres e camponeses como a fala escolarizada dos burgueses também. E como em “Jude, the Obscure“, a certeza absoluta de que o esforço não recompensará os não aquinhoados pela fortuna.
Pois bem, vamos à história. Após saber que é descendente de uma antiga linhagem de nobres, Jack Durbeyfield convence sua filha mais velha, Tess, a procurar seus parentes ricos e apresentar-se ao novo ramo da família. Tess é estuprada, engravida de seu primo, passa a ser malvista pelos aldeões de onde mora, testemunha a morte de seu bebê, cujo enterro e ofício fúnebre é negado pelo presbítero de sua aldeia pelo fato dele ser fruto de uma fornicação. Acha pouco? Pois bem, Tess vai embora de sua aldeia e se radica em uma fazenda de leite, onde conhece e se apaixona por Angel Clare, um filho de um pastor que quer aprender o ofício para abrir sua própria fazenda. Ao casar com Angel, que se considerava um “livre-pensador”, Tess pensa ter encontrado a felicidade, mas é abandonada na noite de núpcias pelo marido quando este descobre que Tess não é mais virgem, muito embora ele próprio tivesse levado uma vida libertina antes de sua estada na fazenda. Tess volta para sua aldeia, onde vê todos os habitantes da aldeia perderem suas terras que garantiam o sustento daquela população, num processo conhecido como “enclosure“, que nada mais é que a transformação de antigas áreas públicas e de uso comunitário em propriedade privada. Acabou? Não. Ela sofre, sofre, sofre e sofre ainda mais. Depois de muito curtir seu sofrimento e ter um breve e ilusório período de amor com um arrependido (e imbecil) Angel, que voltara tarde demais não podendo mais redimí-la, Tess é executada por ter assassinado Alec, seu primo, estuprador e amante.
Porém mais que mero conteúdo psicológico e moral, “Tess of the D’Urbervilles” retrata com argúcia e lirismo o momento do capitalismo da Inglaterra no final do século XIX, o quanto esse mesmo capitalismo tomava cada vez mais espaços de formas de vida tradicionais e centenárias e o início da mecanização agrícola. Inclusive, numa cena onde Tess e Angel levavam o leite para ser embarcado no trem rumo a Londres, no diálogo entre os dois enamorados há quase uma explicação sobre o processo de apagamento das relações sociais na produção das mercadorias como consequência da reificação.
Outro aspecto notável no romance é que pela primeira vez na literatura o campo passa a ser descrito como o lugar do trabalho, da exploração, do sofrimento e da vida dura. Diferentemente do que sempre acontecera, onde a oposição campo x cidade sempre se deu na base de associar a cidade ao vício, ao pecado, ao trabalho, à violência (basta lembrar dos romances de Charles Dickens e seus órfãos sofredores) e o campo ao bucólico, ao pacífico e à natureza.
O autor, Thomas Hardy, foi severamente criticado na época tanto pelo pessimismo de sua obra quanto pela suposta licenciosidade de sua obra, que feria o código de moralidade de um vitorianismo tardio puritano e recalcado. Tais críticas chegaram ao nível do insuportável após o lançamento do romance subsequente, “Jude, the Obscure”, praticamente uma Tess de calças, onde o personagem principal luta com todas as forças que lhe são possíveis para perceber ao final de sua vida (curta, como a de Tess) que não há como lutar contra forças históricas e contra a ideologia que domina as forças de produção. Após a repercussão terrível de “Tess” e “Jude”, Hardy abandona o romance e passa a se dedicar exclusivamente à poesia.
O romance, um calhamaço de 592 páginas, foi adaptado para o cinema por Roman Polanski, o também estuprador de uma adolescente recentemente preso na Suíça, estrelado por uma deslumbrante Nastassja Kinski, então com 19 anos.
Se por um lado o filme fracassa ao retratar as relações sociais de então, concentrando-se principalmente nos desencontros das relações humanas (aliás, o filme ganhou um ridículo subtítulo em português por ocasião de seu relançamento em DVD: Tess – Uma lição de vida. Lição de vida do quê? A coitada da Tess só fez cagada e no final morreu por causa disso), por outro o filme reproduz o tratamento quase fetichista que o narrador do romance dedicava à protagonista. A beleza, a sensualidade ingênua mas abrasadora, os lábios carnudos e vermelhos narrados no romance estão lá presentes no filme. Presentes na beleza ao mesmo tempo arrebatadora e inibida de Tess, representada por Nastassja.
Thomas Hardy poderia até não aprovar a adaptação cinematográfica de sua obra (recentemente adaptada para a televisão em uma minissérie de quatro capítulos produzida pela BBC), mas certamente se orgulharia da Tess interpretada por Nastassja Kinski.