Eu gosto pra caramba de futebol internacional. Acompanho o campeonato inglês assistindo as principais partidas transmitidas e os melhores momentos da rodada completa. Assisto também algumas partidas do campeonato italiano e o que dá do campeonato alemão. Não assisto mais porque, afinal de contas, eu também tenho outros centros de interesse, uma vida social e família 🙂 .
Porém uma coisa é acompanhar e assistir os campeonatos onde, em última instância, estão os principais jogadores do mundo (europeus, asiáticos, africanos e sulamericanos). Outra coisa é torcer, ser apaixonado. Torcer, eu torço pelo Palmeiras, muito embora eu tenha diversas preferências futebolísticas espalhadas Europa afora, como a Internazionale (não me esqueço nunca da primeira partida que assisti, do fascínio que aquele lindíssimo uniforme exerceu e do futebol refinado que Karl-Heiz Rummenigge desfilava), o Liverpool FC e o Tottenham Hotspur.
Mas é cada vez mais comum jovens brasileiros se apresentarem como “torcedor do Chelsea”, “torcedor do Barcelona”, “torcedor do Real Madrid” e assim por diante. Estamos diante de um fenômeno que é o de times europeus cativarem adolescentes brasileiros como seus adeptos.
E qual o problema disto?
A priori, nenhum. Afinal de contas no sudeste asiático e na África, a maior parte da população torce para os times europeus, que brigam por esse mercado com unhas, dentes e fortes estratégias de marketing (como a excursão do Manchester City pela África nesta pré-temporada, ou a do Manchester United na África do Sul, Liverpool por Singapura e China e assim por diante). Mas o que começa a chamar a atenção é o fato de que o Brasil, com uma tradição futebolística sólida e gloriosa, começa a padecer diante dessa concorrência.
E isto é uma mudança de paradigma característico da pós modernidade: a dissolução dos laços de pertença da comunidade. Noções que “cimentam” socialmente uma comunidade como religião, etnia, classe, etc, tornam-se cada vez menos relevantes no mundo da globalização e da comunicação instantânea. Em um passado relativamente próximo um clube cativava uma comunidade geograficamente instalada (Palmeiras na Vila Pompéia, Corínthians na zona leste, clubes de futebol do RJ com o nome de seus bairros com Flamengo, Botafogo etc.), etnicamente restrita (italianos palmeirenses, portugueses vascaínos) e socialmente demarcada (São Paulo FC, o time da “elite” paulistana). Atualmente, muito embora os clubes procurem marcar sua origem como o atual terceiro uniforme do Palmeiras faz menção à cruz de savóia (símbolo da casa real italiana), a diversificação da base de torcedores é disseminada. Todavia, na Europa, principalmente na Inglaterra, a regra ainda é geográfica e social, com torcedores do Tottenham residentes no norte de Londres, do Chelsea na zona oeste, do West Ham na zona leste e assim por diante.
Mas o que realmente salta à vista é que, muito embora questões como pertença a comunidade sejam marcadamente ideológicas, a escolha do time de futebol a se torcer passa a obedecer critérios mercadológicos e consumistas.
Os processos básicos do capitalismo são a dissolução e a fragmentação. E é o que tem acontecido ao se transformar uma experiência cultural e coletiva da pertença a uma torcida em um consumo individual. Pertencer a uma torcida (não estou falando de torcidas organizadas ou outro tipo de organização – sim da experiência cultural) significa compartilhar valores, expectativas e emoções com outras pessoas. Significa ter um objetivo em comum, adversário comum. Ir a um estádio de futebol é uma experiência marcante, que envolve reunir-se com outros indivíduos que compartilham os mesmos valores, vivenciar com essas pessoas a emoção do pré, do jogo e do pós-jogo (neste aspecto nenhum estádio da cidade de São Paulo oferece a mesma qualidade que o Palestra Italia, pelo fato de haver uma profusão de bares nas ruas Turiassu, Caiowas, Diana, Caraibas e Padre Chico, onde a torcida se reúne horas antes da partida para beber uma cerveja congelante, comer um sanduíche de pernil ou um cachorro quente, cantar coros de guerra, batucar, se preparar para a partida – infra-estrutura que o Pacaembu e o Morumbi não oferecem) e depois discutir com essas pessoas e com os adversários o rumo da partida. Não é apenas assistir a partida. É mais que isso.
O torcedor de times de outros países, ao consumir o produto ao invés de vivenciar a experiência, é paciente de dois processos: o fetiche da mercadoria e a reificação.
Fetiche é um termo primeiramente utilizado para se referir a religiões animistas, onde um ídolo (objeto) representa uma divindade, e o cultuador dessa divindade adora o ídolo. Freud utilizou o termo para descrever o comportamento sexual onde a pessoa transfere para uma parte ou para um objeto o foco do desejo, desviando do todo, o que é ao mesmo tempo uma representação e um impedimento. Por exemplo, ao cultuar o pé (podolatria) ou uma peça de lingerie, o fetichista dedica a uma parte ou a um objeto (que ao mesmo tempo representa o corpo feminino e impede o acesso a ele) o desejo que deveria ser, em última instância dedicado ao corpo feminino.
E no capitalismo o fetichismo explica como o consumo de mercadorias ao mesmo tempo representa e impede que o consumidor vivencie experiências significativas. É o caso do executivo que possui uma picape 4×4 cabine dupla e a utiliza para se deslocar de casa-trabalho-casa apenas. O objeto, a picape, representa os ideais de aventura, liberdade, esportividade e radicalismo. O consumidor não vivencia essa experiência, mas consome um produto que a representa.
E a reificação, que é a transformação de tudo em coisa, em objeto, com valor de troca suplantando o valor de uso. Inclusive a experiência da pertença a uma torcida. Ao invés de vivenciar coletivamente, culturalmente a filiação a um time de futebol, atualmente há o consumo de um produto acabado com valor de troca, através da televisão a cabo, da internet e dos produtos relacionados aos times de futebol estrangeiros.
Quando o jovem compra uma camisa do Manchester United, do Milan ou do Barcelona e afirma sua filiação a essas equipes, está acontecendo um processo semelhante ao processo do consumo de um produto não pelo seu valor de uso, aquilo que ele realmente nos oferece de benefícios, mas com base no fetiche, naquilo que o produto representa, mas não oferece. Está acontecendo um processo semelhante ao do rapaz que compra uma motocicleta baseado nas propagandas que enfatizam a liberdade, o cabelo ao vento, muito embora a utilize para zanzar entre as faixas da Marginal Pinheiros, ou do homem que consome uma bebida não pelo sabor, mas pelo ideal de masculinidade, de sedução e de status que a propaganda vende. O jovem compra, junto com a camiseta e o pacote de TV a cabo a experiência de se pertencer a um time quase imbatível, a atmosfera do estádio sempre lotado que canta sem parar os cânticos de incentivo, a coletividade festeira que celebra os melhores atletas do mundo, só que sem viver a experiência, substituíndo-a por uma coisa, um fetiche.
Nada a se lamentar. Pois processos históricos são inexoráveis. Mas a se constatar. Afinal de contas, muito embora o torcedor de futebol goste de afirmar que sua paixão é irresistível, inexplicável e misteriosa, na verdade não é. É perfeitamente explicável, tanto a do sãopaulino quanto a do barcelonista tupiniquim.
https://sinosdobram.wordpress.com/2009/07/20/futebol-globalizado-aqui-nao/